[Reportagem] “Artintimismo”: o que diz a arte quando ela não é vista?

por Anderson Alves e Cássio Vasconcelos

A cultura contemporânea é marcada pela valorização do indivíduo e da subjetividade. Nesse sentido, a arte também sofre uma transformação, deixando de ter uma dimensão puramente externa e coletiva para assumir também um potencial de expressão da singularidade e dos anseios de libertação que atravessam o sujeito na sua luta por reconhecimento e afirmação ante si mesmo e a sociedade.

A arte, na antiguidade, era vista, antes de tudo, como um ofício. Atualmente, por seu turno, o discurso artístico também pode ser encarado como um estilo de vida, ou como uma espécie de “religião particular”. Desse modo, há uma série de pessoas que produzem arte sem a intenção de transformar essa atividade em um meio de vida. O que essa arte diz sobre esses sujeitos? O que essa arte pode dizer também às demais pessoas?

Vertigem, 2016, por Mirella de Freitas: @corpoeclipse

Carlos Belarmino, estudante de Letras da UFC, escreve poemas e poesia desde os 13 anos. Sua primeira inspiração e pontapé inicial foi uma conversa que escutou na cozinha de casa. Essa experiência cotidiana lhe rendeu os primeiros versos. Desde então, passou a produzir com mais frequência, principalmente quando queria cortejar alguém. Eros e Memória como elementos fundamentais da expressão subjetiva. Ele considera sua escrita acíclica – em alguns momentos, se vê refém da inspiração. O filósofo alemão Fridrich Nietzsche chega a mencionar uma oposição fundamental entre as figuras de Apolo e Dionísio; o primeiro representaria o princípio da ordem e racionalidade e o segundo representaria o princípio do caos e do ímpeto. Belarmino se encontra, portanto, mais inclinado a Dionísio, mas também busca as trilhas de Apolo.

Apesar de produzir arte, Belarmino não se considera um artista. Durante uma formação no Curso Princípios Básicos de Teatro (CPBT), do Theatro José de Alencar, ele foi percebendo que artistas podem ser quaisquer pessoas que apresentem um jeito diferente de enxergar e levar os dilemas da vida, para si e para os outros. Esse rótulo, para ele, importa menos que essa visão.

Limão voraz

Sujo no bar
Estático no plástico
Com rostos  passando
Nada me sendo caro
Eis meu tardar
Esperançoso na espera
Ludibriado numa lucidez
Sacaneado musicalmente
Jaz minha indiferença
Me contentando com o trópico
Riso efêmero
Brindo por isso
E as moscas se põe a planar
Um cigarro para espantar
Com o câncer a espreitar
Rarefeito hei de ficar
Rimar! no intuito de magoar
O infeliz leitor
Que queira se encantar

por Carlos Belarmino

Com um acervo de produções que agregam romances, poemas, peças de teatro e prosas intimistas, Belarmino destaca a falta de incentivos e projetos que possam abraçar os autores independentes.

“Viver de literatura no Brasil é muito difícil, árduo. É necessário muito investimento. O mercado atual é elitista e não tem muito espaço para os artistas independentes. Para ganhar projeção e se estabelecer, é necessário mergulhar nesses sistemas excludente. Existem poucos editais de fomento a nossas produções, nem mesmo premiações que sirvam como incentivo para uma publicização e alcance maior”.

Nessa concepção, na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, nasce a Arte Contemporânea, que reúne expressões e técnicas inovadoras que estimulam a reflexão subjetiva sobre as obras, rompendo assim com a forma modernista e concebendo, dessa maneira, um novo pensamento no mundo artístico.

A valorização aqui não é pelo resultado final e sim pelo conceito, a atitude e a ideia concebida. Portanto, consegue-se levar a arte às coisas do mundo, a realidade urbana e à tecnologia. Entra aqui também a consciência ecológica e a grande liberdade de criação para se expressar, tanto em formato técnico como conceitual.

Thiago Soares, 25 anos, psicólogo, poeta e músico residente em Fortaleza, buscou no curso de formação aprender a escrever melhor. Inicialmente, começou pela música, compondo melodia e letra. Essa dupla produção, muitas vezes o fez questionar se fazia poemas ou canções. Logo, foi mergulhando na escrita e experimentando mais essa produção em si.

Entre as lembranças do início do seu processo criativo, as primeiras canções de Thiago foram gravadas em um notebook comprado com as economias da sua mesada. Particularmente, não gostava de ouvir e nem ler aquilo que produzia. Somente amigos mais próximos conheciam seus trabalhos. Seu quarto era seu maior palco. Na poesia, outrossim, talvez por poder ser silenciosa, Thiago chegou a publicar coletânea de poemas Seis trevas sobre o sol nas revistas digitais mallarmagens e Ruído Manifesto.

Nostos (2015), por Thiago Soares

1) Chover
2) Eurídice
3) A sós
4) As rosas falam
5) Avião

“Meu prazer é produzir arte sem a preocupação em ser algo obrigatório. Pensar na arte como um produto me bloqueia. Não me identifico como artista, pois não é um ofício real da minha vida. Arte para mim é uma forma de guardar os momentos que vivo. Não gosto de ler ou ouvir o que já produzi – porque sinto o ímpeto de modificá-lo – mas gosto de me expressar e reforçar meu laço com as pessoas ao meu redor”.

A característica desses artistas independentes remete à contracultura. Seu auge foi em meados da década de 60, com fenômenos como o movimento estudantil na América Latina, Europa e Estados Unidos, contando com expressões como a Tropicália ou o movimento hippie. O principal objetivo dessas manifestações seria romper com as normas e padrões estabelecidos pela sociedade, que sempre ditou os hábitos, costumes, valores e tradições, criando assim sua hegemonia estrutural.

Seu surgimento veio consolidar o espaço em diversos setores sociais às culturas marginalizadas e alternativas. O Impacto desses movimentos se sente em áreas como a Filosofia e até mesmo no setor industrial. Com a globalização e o desenvolvimento de novas tecnologias e mídias, a propriedade e o fazer artístico se transformam radicalmente, proporcionando assim uma reflexão sobre a arte.

Mirella de Freitas, 26 anos, de Fortaleza, é recém formada em Psicologia e também produz arte de umamaneira intimista. Procura explorar diversas linguagens: é desenhista, fotógrafa, artesã, escritora, customizadora, além de fazer colagens. Entre os temas que perpassam a diversidade de suas produções está o questionamento sobre as próprias estruturas do real. Em sua arte, explora o sobre-real (sur-real) e estuda a figura do feminino.

Mesmo com um bom volume de produções e um perfil no Instagram, Mirella destaca que muitas vezes não deseja expor ao mundo algumas publicações. Fugir dos algoritmos e das cobranças mercadológicas, que colocam a arte como um produto, não faz parte do seu processo de produção e nem é parte do legado que busca com suas atividades. Busca mais a experiência pessoal do que a visibilidade, sem se ver colocada nesse espaço-vitrine.

“Talvez, se a arte tivesse mais espaço na cultura como ela deve ter, e não fosse simplesmente vista como um produto, teríamos artistas mais felizes e menos explorados. Dificilmente minha arte se encaixaria nesse formato mercadológico. O mercado artístico não foi feito para os pequenos profissionais, reforçando a lógica estrutural da sociedade, mantendo as desigualdades, principalmente entre os independentes”.

Mirella também destacou ainda que não se considera uma artista da contracultura moderna, pois se percebe mais como uma pessoa que pensa na contracultura. Coloca sua arte em uma ótica que atua na quebra dos padrões de mercado e que abraça os discursos que muitas vezes são distanciados do grande circuito artístico e cultural, principalmente quando falamos das mulheres.

O artista independente diz o que pensa, vê e sente. Seu maior legado é poder expressar a sua visão de mundo e atingir o público pelo sentimento, reflexão e inconformismo. As dificuldades do mundo do trabalho muitas vezes afastam as pessoas de tudo aquilo que só a experiência artística pode proporcionar. A indústria cultural, além de transformar a arte em produto, bloqueia as conexões mais íntimas entre os sujeitos e tira o caráter único dessa ligação singela com o outro. A arte nasce de dentro do corpo e da mente, e não de cifras ou algoritmos.

Contratos visuais, 2021, por Mirella de Freitas.

Autor: Cássio Vasconcelos

Aprendiz de jornalista e adepto dos caminhos de Saturno.

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora